quarta-feira, março 15, 2006

a uma respiração

Sem inspiração inspira expira para se soltar do balão de ar na garganta sem dor sem palavra sem assunto nem direcção. Para onde é que ela vai indo na direcção oposta à suposta indo na ilusão aposta que consegue lá chegar. Sem inspiração ela não consegue dormir não consegue sumir-se não. Para onde é que ela vai sem almofada sem vestido sem o incenso ainda ter ardido. Expiração espirro escarro solta-se no ar como um bocado de carne engasgado e empedernido. Salivação de tanto bater o coração. Degustação de um assunto proibido inalado e agora vomitado. Para onde é que ela vai sem gotas para os olhos sem olhos para a despedida.
Quem lhe disse que não se pode penar simplesmente. Uma pena apenas. Por viver neste mundo.

quinta-feira, março 09, 2006

...

Ela era como as gordas
Um salto para cima e era morte certa
Podia sempre alegar que alguém a empurrara
“Mas não estavam sozinhos no quarto?”

quarta-feira, março 08, 2006

Naquela noite [RFH X]

Polly era a única iluminada naquela sala.
Não fosse a pequena Polly estar destinada a ser Santa e o caldo estava estragado.

Naquela noite evitou que o Avô levasse a cabo tal chacina.

Conseguiu impedir, para grande pena da mãe, os rapazes de abrirem os olhos, de crescerem e se tornarem homens, mas não impediu com certeza que nessa mesma noite, ao deitar, se masturbassem dando início à sofreguidão da adolescência.

sexta-feira, março 03, 2006

A velha

A notícia chegou com as ondas
Espalhando algas na areia

Havia quem lesse algas como quem lê búzios
“Afundou-se o navio em lágrimas salgadas"

Afundou-se toda a frota nessa noite

Afundaram-se as calças dos homens
As poderosas mãos de mar

Afundaram-se as saias rodadas
Com o peso dos tamancos
Com o peso dos cabelos molhados
Com o peso das pálpebras inchadas

[Depois o sol rasgou a praia
No seu silêncio de lamento]

o peixe morto deu à costa
sem maré que o suportasse

a velha andou até ao mar
com olhos binóculos
de tantos anos a procurar o Homem.

Já era dia
Nem sinal Deles.
Só peixe jogado na costa.

Deixou cair os olhos.
Os binóculos.
Na areia.

quinta-feira, março 02, 2006

Maçã rebuçado


A pequena maçã de rebuçado ficava pendurada no alto do escadote enquanto a mãe trocava a lâmpada para distrair a atenção do rapaz.

A pequena maçã de rebuçado açucarada colava-se à boca à língua à roupa ao escadote aos pés da mamã.

O rapaz babava-se só de a ver escorregar, como um caracol ranheta, pelo escadote metálico.

Gostava de sentir os dedos a colar entre si de a agarrar com as mãos e de a lamber demoradamente só para tirar o açúcar.

Maçãs [RFH IX]

Os rapazes

-A avó não pode comer maçãs não é?

- Que pena.